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  • Foto do escritorAndréa Jaeger Foresti

O PROJETO MOEDA FLOR À LUZ DA ANTROPOLOGIA ECONÔMICA: UM RESGATE EM TEMPOS DE COVID_19


Em tempos de Corona Vírus, em isolamento social, comecei a arrumar armários e me deparei com materiais interessantes que produzi em 2013 quando fiz uma disciplina de Antropologia Econômica como pré-requisito para o Mestrado.

Com o desafio da primeira escrita, de dez produções textuais que foram entregues durante o andamento da disciplina, definido como forma de avaliação pelo Professor Ruben George Oliven, optei em escrever sobre a experiência que vivi como gestora do projeto Moeda-Flor na Ilha das Flores, desenvolvido pelo Instituto Redecriar em 2012, tendo em vista, tratar-se de uma perspectiva de valor social atribuído à questão econômica.

Para isso propus a articulação de alguns elementos extraídos de artigos de Karsenti, Babadzan, Godbout e Kilani, à concepção do projeto Moeda-Flor, que foi executado com recurso captado em edital público-privado, promovido pela Rede Parceria Social – Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul.

Das leituras que fiz e do que consegui compreender dos textos, percebi que alguns desses autores se pautam na obra de Marcel Mauss e, em razão de minha primeira aproximação com leituras em francês, acabei me interessando por pesquisar sua biografia.

Considerado como "Pai da etnologia francesa", Mauss preconiza a teoria da ciência social como representação coletiva de caráter autônomo; diferente da psicologia, cujos objetos são as representações individuais. Mauss define três momentos como fundamentais para a manutenção das relações sociais, conforme ilustra a Figura 1:


FIGURA 1: MANUTENÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS


Ao relacionar estes momentos ao contexto histórico da comunidade em que o projeto Moeda-Flor foi desenvolvido, verifica-se o que Karsenti define como "economia do dom", em que as coisas carregam o espírito do doador, na medida em que há naquele espaço, uma cultura de doações que se reproduz entre os moradores. Há a população pobre, ocupando assentamentos precários na Ilha, caracterizados por moradias precárias, localizadas em faixas de domínio da rodovia e áreas de risco, afetadas por inundações. Há também os moradores sazonais, que, embora suas residências ocupem as margens do Rio Jacuí, não sofrem as consequências das inundações em razão do padrão construtivo, tanto das moradias, como do entorno das mesmas. A população empobrecida, desde suas primeiras experiências com as inundações, passou a receber doações e, em função da precariedade das condições de vida, foram inseridos em programas sociais, como Bolsa Família, Pastoral da Criança e Fome Zero.

Alguns desses moradores que se configuram como lideranças locais, também são contemplados com doações, no entanto, assumem atribuições determinadas pelos programas sociais, como a de acompanhar o desenvolvimento de crianças entre 0 a 6 anos de idade. Como agentes sociais do Programa Pastoral da Criança, realizam visitas domiciliares, pesam as crianças, distribuem alimentos e registram sistematicamente os dados coletados durante o monitoramento das famílias. Esses agentes, da mesma forma que se configuraram como receptores de doações em determinado momento, assumem o papel de doadores em outro momento, carregando o "espírito de doador", definido por Karsenti.


Quando o espírito da DOAÇÃO é caridade, no momento em que o RECEPTOR retribuir algo ao DOADOR, esta retribuição, será a expressão da CARIDADE, que se reproduz, segundo Babadzan, como "obrigação de fazer doação". Ou seja, os agentes sociais, quando assumem a posição de doadores, também carregam o espírito da caridade aos seus pares que se encontram em situação mais vulnerável. É importante lembrar que este ciclo de doação gera a manutenção das relações sociais, e assim, não tem o objetivo de transformar as condições em que as mesmas se efetivam.

O projeto Moeda-Flor na Ilha, desde sua concepção, tinha como objetivo principal, atribuir maior autonomia à liderança comunitária, no sentido de seus integrantes não mais dependerem dos recursos oferecidos pelos programas sociais, e das doações. Em outras palavras, buscava-se a transformação das condições em que se efetivam as relações sociais na comunidade de Ilha das Flores.

Se, conforme Godbout, "a doação de caridade reduz o receptor", entende-se que para transformar as relações sociais, torna-se necessário romper com este ciclo benemérito e caritativo, e definir elementos que substituam o caráter da doação de caridade, para promoção de autonomia.

Tendo em vista que se vive em uma sociedade de economia capitalista que, conforme Karsenti, "tem o valor de troca da mercadoria com o fim nela mesma”, o projeto Moeda-Flor buscou a superação deste contexto ao fundamentar sua metodologia em valor de troca que agregasse valor social e ambiental à questão econômica. O valor de troca da mercadoria envolvida neste projeto materializava um processo de emancipação dos participantes à medida que foi incorporado ao valor das mercadorias (adquiridas com recursos econômicos do projeto), o valor da participação da comunidade nos encontros. Além de conteúdo teórico sobre autonomia, abordado a partir de dinâmicas de grupo, a autonomia também foi construída a partir da prática, expressa na produção de materiais que agregam valor social e ambiental. Cabe ressaltar que os materiais (Figura 2) são produzidos coletivamente na Ilha das Flores, a partir do reaproveitamento de embalagens plásticas (resíduos sólidos), foram certificados como Tecnologia Social (TS) pela Fundação Banco do Brasil, em setembro de 2011 e geram renda a quem se evolve neste processo.


FIGURA 2: TECNOLOGIA SOCIAL JOIA SUSTENTÁVEL


A troca se estabelecia entre as mercadorias, que se se constituíam de demandas e desejos dos participantes, e as Moedas-Flor, confeccionadas com papel plastificado. Quanto maior a participação da comunidade nos encontros promovidos pelo projeto, maior a quantidade de moedas-flor que os participantes adquiriam, o que permitia acesso a uma maior quantidade de mercadorias durante o evento de troca.

Pressupõe-se que a substituição do processo de doação pelo estímulo à participação social gere autonomia, inicialmente a este pequeno grupo de moradores que participaram do projeto. Ao longo do tempo, ao reproduzir a concepção deste projeto em outros espaços, é possível que a autonomia seja difundida com as demais famílias carentes da região.

Ao incorporar o espírito da autonomia no agente da DOAÇÃO, no momento em que o RECEPTOR retribuir algo ao DOADOR, esta retribuição, será expressa em representações coletivas de caráter autônomo - AUTONOMIA - por exemplo, projetos coletivos.

A partir de um olhar sobre a realidade dos representantes de moradores da Ilha das Flores, à luz dos textos trabalhados, é possível afirmar que o ciclo da manutenção das relações sociais pode ser transformado na medida em que a teoria da doação é re-significada para uma perspectiva emancipatória. A metodologia da Moeda-Flor pode ser um exemplo de materialização dessa transformação das relações sociais e, dessa forma, os três momentos de Mauss, passam a se conformar de acordo com a Figura 3:


FIGURA 3: TRANSFORMAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS


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